segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

FAMÍLIA SOPRANO – VIRTUOSISMO NARRATIVO

Um exemplo do virtuosismo narrativo da série, ao mesmo tempo, um exemplo de epifania dramática:

Cena 1 - Casa da mãe de Tony.
Svetlana, atende a porta. Entra Tony.
“Janice já ligou?”
Svetlana dá negativa. Tony quer saber se tem comida. Svetlana diz ter cervejas na geladeira e que “a entrega de carne da mãe ainda vem, toda semana. Está pra chegar”.
Tony abre geladeira atrás dos frios, abre uma cerveja, como umas fatias de copa e enquanto mastiga, fica rígi-do subitamente, pois acabou de ter uma lembrança da sua infância, ali, comendo de pé, na frente da geladeira da casa onde morou toda sua infância com os pais.

Cena 2 – Rua em frente ao Satriale´s - FB
Tony com 11 anos.
Johnny, pai de Tony, sai do carro e se dirige ao Satriale´s, pedindo para Anthony ficar esperando no carro.

Cena 3 - Satriale´s interior - FB
Johnny entra e vai falar com o senhor Satriale, que atende uma freguesa, atrás do balcão. Johnny quer saber do dinheiro atrasado, Satriale diz não ter nada, fregueses estão devendo pra ele. Entra Tio Junior. Johnny e Junior levam Satriale para os fundos do açougue.
Tony desobedece, sai do carro e entra no Satriale´s, bem a tempo de ver o pai e Junior empurrando o proprietá-rio pros fundos. Tony, assustado mas curioso, os segue sem ser visto.

Satriale´s – fundos - FB
Johnny dá uma lição em Satriale, cortando o dedinho de uma mão com um cutelo. Tony vê a cena toda, o cute-lo ameaçador acima da mão indefesa de Satriale, presa pelo pulso pela forte mão do irado Johnny Soprano.
Expressão de susto de Tony no momento que o dedo é arrancado.
Johnny vê Tony ali, na porta entreaberta.
“Mandei você não sair do carro!” – berra, possesso.

Cena 4 - Consultório Dra. Melfi
Expressão pesarosa de Melfi. Ela tenta absorver a violência daquele momento da infância de seu cliente, Tony. Que olha pra ela (piadinha) e diz, irônico: “Que foi? Seu pai nunca cortou o dedinho de ninguém?”. Ela não ri, ambos se encaram, Tony agora mais consciente da merda que olhou. “É uma experiência traumática para qualquer um, principalmente para um garoto de 11 anos”. Ele diz que foi um movimento rápido, querendo dizer que não teve tempo o suficiente para ver horrores, e pergunta: “Posso ir mais fundo?”.

Cena 5 – Sala da casa dos Sopranos – FB
Tony com 11 anos.
Pai dormindo no sofá com o jornal aberto no colo. Tony chega, pai acorda e explica o motivo daquilo que Tony viu. Que é com esse dinheiro que coloca comida na mesa, que Satriale devia-lhe dinheiro por causa de jogo e pede com grande seriedade para que Tony nunca jogue. Tony observa sério. “Que isso lhe sirva de lição: um homem deve pagar suas dívidas”.

Cozinha dos Sopranos - FB
Jantar em família. Mãe serve a carne de Satriale. Ela gostou do pedaço. Grande, mal-passado. Tony vê o suco da carne, ela molha o dedinho no molho (dedinho que de Satriale foi arrancado) e Johnny chupa o dedinho da mãe para sugar a gota de sangue do molho da carne. Depois canta música romântica e pega mãe pra dançar. A dança aumenta sua intensidade sexual, o casal cria tesão, Johnny aperta a bunda da mãe. Tony observa, pela primeira vez percebendo os pais como um casal sexualizado. O pai fatia a carne, sob o olhar atento de Tony, que vai ficando enjoado olhando o interior cru da carne.
Tony tonteia e cai. É seu primeiro desmaio.

Cena 6 - Consultório Dra. Melfi
Tony termina de contar: levou quatro pontos na testa, acabou com o jantar.
Dra. Melfi explica: “É óbvio que atingimos um ponto importante aqui. O que viu naquele dia. De onde vinha a carne. E o prazer que sua mãe tinha com ela”.
Tony diz que a mãe ficava excitada com a carne gratuita. O único momento em que sorria, talvez o dia semanal que transava com Johnny. Tony não quer mais falar. Melfi diz que ele presenciou a violência e o sangue pre-sentes na comida que iria consumir. “E também percebeu que um dia você poderia ser o responsável por trazer carne para casa, como seu pai foi” (ou seja, precisar praticar a violência como meio de sobrevivência).
(volta-se para a cena 1 com Tony perguntando:)
“Tudo isso de uma fatia de capocollo?”
Melfi lembra-lhe de Proust. E diz que “Saber por que tudo começou o tornar menos vulnerável no futuro”.

The Sopranos – Episódio: Fortunate Son
Escrito por: Todd A. Kessler
Dirigido por: Henry J. Bronchtein

Obviamente, esse trecho do terceiro episódio da terceira temporada fica ainda melhor quando assistido. Mesmo assim, é possível ver o virtuosismo, o ping-pong temporal. A influência de Proust, de Freud.

Ok, nem tudo na vida pode ser explicado/mostrado com tamanha organização – só que a construção de um roteiro pode. E esse trecho é competente demais.

Um comentário:

  1. Hei de convir que é um SENHOR ping-pongue esse de escarafunchar na formação de um personagem marcando a trama argumental (para ser praticamente redundante) do enredo. A mim remete os mestres Sergio Leone (em "Era uma vez na América", outro modelo nesse jogo de composição, e também com direito a gangsterismo...) e Alan Moore (o bruxo dos roteiros ilustrados, que já estão no giBi, como no já surradamente citado e cinefilamente dilapidado Rorschach, personagem e principal foco narrador de "Watchmen"), mas com certeza há outras referências válidas dentre os próprios narradores (e Freud é sem dúvida um deles...) para sacar das possibilidades em arte sequencial ou audi-visual.

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