domingo, 7 de fevereiro de 2010

VIAGEM A FORLI - MAURO RASI

Viagem a Forli é, da Trilogia lançada pela editora Relume Dumará em 1993, a peça de Mauro Rasi mais discursiva, “teatral” e até mesmo pouco movimentada. É também, no entanto, a peça de maior profundidade e com o final mais potente.

Viagem a Forli chega a irritar em alguns momentos. Parece não ter foco, parece querer rememorar o passado com um olhar desiludido-de-boutique. Mas quando o foco se ajusta, já no clímax, há uma sucessão de verdadeiros “pontos de virada” que acumulam densidade, inteligência e talento, levando a peça para uma resolução de verdadeira epifania em escala menor – algo tecnicamente difícil de criar, por sinal – que faz o leitor fechar o livro com um sorriso de satisfação.

De novo repito, Mauro Rasi é de um talento completo, de um domínio técnico certeiro. Estou me sentindo meio burro por não tê-lo lido antes. E preconceituoso. E, vamos combinar, ser preconceituoso é indesculpável. Achava que Mauro Rasi era um dramaturgo de peças escandalosas e bobas – com a energia um pouco superior a um episódio de sitcom americana, ou de um seriado de TV brasileiro. Mesmo o Miguel Falabella, quando quer ou quando pode ou quando deixam, sabe escrever na e para a TV com um humor e uma inteligência muito interessantes. Pois achava que Mauro Rasi era autor de um episódio ruim de Toma Lá Da Cá, por exemplo.

Santa ignorância, Robin.

Me tornei fã do cara. Ele conquistou com seu trabalho tanto pelo lado intelectual (assuntos abordados, técnica de escrita, qualidade dos diálogos), quanto pelo lado emocional. Suas peças conseguem nos fazer entender as motivações e pontos-de-vista de todos os personagens – que nunca são supérfluos.

O enredo de Viagem a Forli gira em torno de um casal de professores brasileiros que viaja de carro pela Europa após terem participado de um congresso, no início dos anos noventa. Sovinas, economizam o que podem, levando restos dos cafés da manhã dos hotéis e jamais circulando por auto-estradas para não pagarem pedágio. Os acompanha o dramaturgo de sucesso Juliano, quarenta e poucos anos, que sem motivo ou motivação, segue de carona – saboreando a vida e o reconhecimento que tem no Brasil, enquanto segue em direção a cidade italiana de Forli, local de origem dos seus antepassados. Os três personagens recebem a companhia de Juliano aos vinte anos (ironicamente chamado de Juliano Velho na peça), saído diretamente de dentro de uma mala do bagageiro do veículo.

A partir do monologo inicial com o Juliano quarentão contando ao público seus esforços para ter o talento reconhecido na infância, passando pela divertida leitura dos cartões-postais enviados por Juliano adolescente aos pais durante sua temporada européia em 68, em Paris, a vida desse homem é esmiuçada com detalhes ora cômicos ora tragicômicos. Como, por exemplo, o fato de jamais ter escrito para sua irmã durante sua estadia européia. Seu pai imitava sua caligrafia para inserir um “e para Célia” nos cartões-postais.

Intelectual com a bagagem anos 60 todinha na cabeça, choramingando por trocados nas cartas aos pais, anti-burguês ferrenho, o jovem questiona o velho, buscando entender como a tranqüilidade e aceitação social pode ter sido tão rapidamente assimilada.

Esse ping-pong de acusações e desculpas de um homem, confrontando seu sonhos de juventude com sua maturidade, acrescido de memórias cômicas da família em Bauru, chegam a um limite na Áustria, quando o “santo baixa” e Juliano Quarentão inicia uma dolorosa rememoração do que seria sua vida na Europa devastada da Segunda Grande Guerra. Em transe, ele não reconhece mais os professores – que subitamente parecem se transformarem em guardiões de Juliano, que ali estão para auxiliá-lo a fazer a passagem da velha vida na Europa a nova vida no Brasil. Tirando-o “da condição de efeito para colocá-lo a posição de causa” e detendo os transtornos psicológicos de destruição e infelicidade.

Ao mesmo tempo, o Jovem (40 anos) é atacado pelo Velho (20 anos): “Tudo o que você conseguiu foi à custa do que eu vivi! É a minha vida que você escreve”.

Para quem leu A Trilogia, as acusações têm fundamento. Rasi se atirou à vida sem querer saber das redes de proteção e então, num mea-culpa, redescobre que o prazer da conta bancária e da segurança só é completo reconhecendo os anos de dúvidas - de som e fúria.

A peça termina com a lembrança da irmã: “Por que você era daquele jeito ruim, revoltado?”

Começa na nevar na Áustria.

O Velho lê para o Jovem a carta da irmã: “Cheguei à conclusão que você era uma pessoa externamente e outra, bem diferente, internamente, guardando seu amor apenas para quem merecesse. É isso mesmo?”

Viagem a Forli é uma peça sem respostas prontas e por isso continua tão encantadora e estranha.

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