sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A ESTRELA DO LAR - DE MAURO RASI

Encenada em 1989, A Estrela do Lar ainda fascina. A peça tem uma estrutura nada ingênua e uma técnica apurada, o que levanta a seguinte questão: por que as peças de Mauro Rasi eram chamadas de besteirol?

Se A Estrela do Lar é ou foi um besteirol ou exemplo de “teatro raso” então boa parte do atual “entretenimento” comercial brasileiro (seja TV aberta, seja cabo, seja teatro ou cinema) é “besteirol ao quadrado”.

Senão, vejamos. A Estrela do Lar dramatiza a vida de uma família do interior paulista durante os dias pré-ditadura, na década de 60 do século passado. Há o pai, dono de um pequeno comércio, escritor de versinhos e teatrólogo amador. Há a mãe, dona de casa eficiente, classe-média interiorana, personalidade tão ímpar, tão teatral na sua maneira de ver o mundo que não resta ao filho outra coisa senão gravar suas conversas ao telefone com as amigas, fascinado que está pela força da sua oralidade trivial.

E há Juliano, o filho. O jovem Mauro Rasi, inconformado com o destino. Um artista “decadente”, vivendo e sendo sustentado por pais tão “caretas” e “pequeno-burgueses” (alguém ainda sabe a conotação que devemos entender quando lemos “pequeno-burgueses’?).

Juliano com ódio das peças bobas do pai, rouba as folhas datilografas da peça “Dr. Alvarenga” para, no verso, datilografar como num parricídio simbólico, sua peça: “O Macho Familiar”, um arrozoado com pretensa influencia Passoliniana (Teorema), mas que na verdade é um pastiche maluco de tragédia grega, sexualidades complexas e masoquista e nazismo – tudo querendo dar a impressão de Grande Arte (na cabeça de Juliano) mas que Rasi consegue transmitir como algo bem Charlie Kaufman para o leitor – ou seja, Rasi não é ingênuo como Juliano e apresenta a peça “degenerada” com o humor e o distanciamento certos. A impressão é a de que Rasi relembra a si mesmo em Bauru (sua cidade natal) quando jovem escrevendo furiosamente suas peças anti-establishment (agora com o olhar competente do profissional) sem perder a ternura por ambos os mundos – o mundo do jovem querendo ser grande artista dentro do quarto e morando com os pais – e o mundo das influências teatrais e fílmicas européias (alemãs e francesas, principalmente), estagnadas, expressionistas e devassas, reverberando a tragédia da Segunda Guerra eminente.

A maluquice é que a peça “lado A” do papel, a peça do pai, também é “encenada” para o público, lida por Nielson no começo, mas depois tomando vida própria. Nela, o Dr. Alvarenga, cientista abnegado, trabalha em seu laboratório com afinco buscando uma vacina contra a leucemia. Com ele, sua assistente, Olívia. Dr. Alvarenga e Olívia acabam se apaixonando platonicamente, o que faz com que sua esposa exija da moça o abandono do emprego. Essa é uma peça simplória, um draminha água-com-açúcar, baseado realmente em uma peça escrita pelo pai de Rasi e que contrasta brutalmente com a peça de Juliano.

Para completar, há a peça no presente. Nela, Juliano se tranca no quarto com Nielson, seu melhor amigo, para escrever com ódio e energia sua peça nazista enquanto na sala e na cozinha, a mãe realiza seu afazeres domésticos, conversa com os parentes ao telefone, espera o marido para almoçar, relembra do terreno “naquela esquina” que há trinta anos o marido deixou de comprar por uma ninharia e que agora foi vendido por uma fortuna para um supermercado ali construir sua nova loja, recebe a visita de uma parente que a convida para a Marcha Patriótica pró-militares e contra o Jango, etc.

As três peças acontecem numa montagem paralela cinematográfica, com o diferencial e a dificuldade que os atores das três peças são os mesmos e estão atuando ao vivo, no palco.
Só essa variação deve ter dado um dinamismo extraordinário à peça quando encenada.

Claro que as referências de A Estrela do Lar “envelheceram” – já não eram nem as da minha geração. Nas referências Mauro Rasi lembra muito o Caio Fernando Abreu, por causa da cultura européia “degenerada”, cult. Baudelaire, Gide, Pabst, República de Weimar, Oscar Wilde, Zarah Leander.

Mas se militares e jovens sonhadores influenciados por Nietzsche, feitichismo sadomasô do nazismo ou Jean Cocteau desapareceram da face do país, algo da estrutura familiar retrata em A Estrela do Lar se manteve. Falo de Aspázia, a mãe-musa-antagonista de Juliano, a dona de casa que ainda hoje existe como personagem em, por exemplo, A Grande Família.

Marieta Severo deve ter dado um show como Aspázia/Rita na temporada de 1989, redefinido o tipo. Porque ainda hoje, vinte anos depois, é aceita pelo público como encarnação da dona de casa decente, preocupada com os filhos e com o marido. Marieta Severo deu luz à uma forma de interpretação (que foi novamente burilada em 1997, em um dos episódios mais engraçados do extinto programa Comédias da Vida Privada, na pele da mãe zelosa de um hilário “vagal” interpretado por Murilo Benício).

Voltando ao texto: se a última fala de Juliano é explicando que alguém deve morrer em sua peça para que esta ganhe o lastro, a complexidade algo excêntrica que ele tanto anseia, Rasi a contrapõe com grande inteligência à fala final de A Estrela do Lar (Aspázia, é claro, a pronuncia) quando ouve-se mesmo um tiro, o que assusta os familiares, somente para que ela acalme a todos: “Deve ter sido um abacate” – caindo contra o teto de zinco.

O tiro encharcado de uma idéia de cultura sofisticada e decadente dá lugar ao cair de um abacate contra um teto de zinco. E o que poderia acabar em tragédia e guerra, acaba com uma mãe tranqüila em sua capacidade de explicar o mundo. Nada mais brasileiro.

Por isso, detrás de sua metalinguagem sofisticada, A Estrela do Lar é também e ao final, uma rendição completa à figura da Mãe.

Um comentário:

  1. Atuei em A MENTE CAPTA, e assim conheci as peças,vida e família de MAURO RASI.O Crime do Dr. Alarenga, escrita pelo pai, foi resgatada e teve sua estréia em BAURU SP. No elenco Paulo Autran, Drica Moraes...
    Mauro, assim realiza os desejos de seu Pai, em montar seu texto! Em vida, o filho MAURO RASI rende essa homenagem ao Sr.OSWALDO RASI.
    ...se a vida lhe der um limão, faça uma deliciosa caipirinha!
    ZÉ FRANCISCO CAMILO
    ATOR
    BAURU SP (JAN 2017)

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